CIDADE DO FUSCA
Em Cunha, quase todo mundo tem Fusca. Quem não tem quer ter. Quem não
tem e não quer ter precisa pagar para alguém que tenha. O carro, extinto
pela Volkswagen há exatos dez anos, ainda é a única salvação para ir e
vir pelas vertiginosas ladeiras de terra e de paralelepípedo da cidade.
Zé Cuta tem 79 anos, 1,88 metro de altura e calça 47. Uma vez por
semana, ele enche de queijo o banco traseiro de seu Fusca 1300, ano 79,
dobra-se para caber no carro e dispara para vender o produto de seu
rebanho. Nos últimos dias de maio, o mineiro não escondia certa tristeza
enquanto jogava conversa fora no banco da praça da Matriz. Os negócios
vão bem, mas ele esforçava-se para resistir ao pedido dos 14 filhos, 51
netos e 13 bisnetos. A prole aventava mudar o endereço da festa do
aniversário de 70 anos da esposa. "Eles moram fora, trocaram os Fuscas e
não conseguem mais chegar aqui em casa."
Na cidade, encravada
entre as serras da Bocaina e do Mar, no interior de São Paulo, só o
Fusca salva. Quem mora lá sempre sobe ou desce. Difícil encontrar uma
rua plana. O preço baixo, a manutenção simples e, principalmente, a
tração traseira - mão na roda para superar as rampas do dia-a-dia - são
os trunfos que garantem a preferência. A esse lado racional soma-se o
orgulho de ser o feliz dono do mais famoso VW de todos os tempos. Não há
estatística oficial, mas calcula-se que 2000 deles circulem pelo
município de 26000 habitantes. É um para cada 13 cunhenses. Noves fora, é
como se mais de 1 milhão deles ainda rodassem pela cidade de São Paulo.
Para
chegar à roça onde cultiva milho e feijão, Morésio de Oliveira França,
54 anos, também acelera um Fusca - motor 1500, ano 72. São 12
quilômetros do centro até a região do Macuco, famosa pelas incríveis
inclinações de suas estradas. "O Fusca é o meu cavalo", compara o
roceiro, que ao chegar ao milharal resolveu mudar de lugar um dos quatro
bezerros do pasto. Para isso, bastou laçar o animal, amarrá-lo, tirar o
banco do passageiro e acomodar ali o filhote. A bordo do New Beetle -
o
"novo Fusca" -, sigo Morésio. Em vão, tento manter a mesma tocada.
Baixo e sem a idolatrada tração traseira, o carro sofre com as pedras e
as rodas dianteiras giram em falso nas subidas. Paciente, Morésio espera
e ri ao confirmar o que já havia sugerido: "Tem certeza que quer ir ao
Macuco? Esse carrão é chique, mas não dá conta, não".
Amauri
Osório, 53 anos, dono de um modelo 71, sabe que não compensa usar seu
Escort na roça. "O Fusca sobe fácil, poupa os pneus e gasta menos
combustível." Segundo ele, o preço do carro em Cunha é até 30% mais
alto. Por isso, apesar de a cidade ser fonte para interessados no
carrinho, é preciso estar disposto a pagar mais.
"O negócio é
comprar fora e tentar vender aqui", diz Alcindo Mestre, 42 anos,
corretor de Fusca. Ao lado de João dos Passos e Rubinho, Alcindo faz
ponto na esquina da praça da Matriz de olho nas oportunidades de
negócios com o carro. Nas transações, entram Fuscas, lotes de terra,
televisões e até bezerros. Mestre havia negociado naquela semana um
modelo em troca de 1000 quilos de bezerro - o equivalente a dez animais.
"Deu 2500 reais."
Para os donos das oficinas de Cunha, não falta
serviço. Se por um lado o mito do carro inquebrável se confirma, por
outro a enorme frota e os 2000 quilômetros de estradas de terra garantem
casa cheia para Darcy Castilho, de 42 anos. O funileiro cansa de trocar
os pára-lamas traseiros do Fusca. "É muita pedra. E tem o problema da
urina das vacas, que apodrece a lataria", conta Darcy, dono de um Fusca
79 branco, tinindo de novo. De cada 15 carros que batem à porta de sua
funilaria por mês, 14 são Fuscas. "Aqui nós conhecemos bem o produto."
O
carro também domina a clientela da oficina mecânica de Mamed Alves da
Silva. Aos 85 anos, uma dor nas costas o tirou do batente e o proibiu de
dirigir seu Fusca 66 totalmente original. "A única mudança foi o motor.
Trocamos o 1200 pelo 1600 por causa das ladeiras", diz Francisco de
Assis, filho de Mamed. "A maioria dos serviços é simples, como a troca
da lona do freio e a limpeza do carburador." O herdeiro Yan Francisco,
de 13 anos, neto de Mamed, trabalha como mecânico de confiança na
oficina. "Ele já sabe trocar e até regular o carburador", orgulha-se o
pai.
A fama do Fusca em Cunha é garantida historicamente por
homens como Roque Benedito de Oliveira, de 61 anos. Desde que começou a
dirigir, Roquinho soma dez Fuscas na carreira. Hoje tem dois. O
vermelho, ano 68, não anda bem das pernas. "Por 2000 reais, eu vendo." O
verde, ano 69, inteiramente original e "com cheiro de novo", é relíquia
inegociável. Outro "fuscólogo" é Jairo de Carvalho Osório, o Lau. Aos
60 anos, traz 30 Fuscas no currículo. O atual é um dos poucos táxis da
cidade. "Quem não tem Fusca e trabalha na roça precisa dos meus
serviços", diz Lau, que cobra 15 reais a cada 10 quilômetros rodados em
seu Fusca.
Menos fanático pelo carro é o jornalista e escritor
Moacir Japiassu, paraibano com passagens nos principais veículos da
imprensa brasileira, autor de oito livros e que há cinco anos deixou São
Paulo para morar em um delicioso sítio nos arredores de Cunha. O Fusca
ano 71 foi comprado pelo pai do jornalista em 1976 para que ele pudesse
se deslocar da cidade ao sítio e acompanhar as obras. Hoje, o carro é
dirigido pelo caseiro Severino Cardial da Silva, o Bininho, 65 anos.
Japiassu, nas raras vezes que se aventura fora do sítio, prefere um
Toyota Hilux, ano 94. "O Fusca é muito duro para mim."
Cunha não é
lugar nem de carros caindo aos pedaços nem de exemplares de
colecionador. Os Fuscas que tomam conta da cidade são os carros do
dia-a-dia, batidos, arranhados, sujos, mas com um grau aceitável de
cuidado. Há, no entanto, um ou outro que salta aos olhos: desde os
modelos anos 60 até uma única unidade remanescente da Série Ouro, a
última leva, produzida pela Volkswagen em 1996. A dona, Leonídia Mariano
Ferraz da Silva, 38 anos, leciona na zona rural, mas pre-fere ir de
ônibus a maltratar o carro que marcava apenas 62345 quilômetros rodados
quando a visitamos. Ela comprou o Fusca por 9500 reais há dois anos e já
recusou proposta de 16000 reais feita pelo ex-proprietário.
O
carro da auto-escola de Cunha é um Fusca, claro. Mas a delegacia da
cidade conta com um Land Rover 110 e um Santana para atender às poucas
ocorrências - a maioria delas é de furtos e o último homicídio foi há 17
meses. Para entregar intimações em certos endereços, a delegada Silvia
Souza precisa contar com a ajuda dos donos de Fusca. "Em algumas
estradas de terra, o Land Rover não consegue fazer a curva", diz o
investigador Everaldo de Pinho. "Um Fusca cairia bem", afirma.
A
cidade dos Fuscas não tem semáforo. Não há guarda de trânsito e ninguém
é multado. Acidentes são raros. Essa "moleza" para o motorista causa um
leve e desnecessário trânsito. "As pessoas param em fila dupla para
bater papo em frente à padaria", diz Gilberto Jardineiro, paulistano e
principal responsável pelo nascimento do pólo ceramista de Cunha.
Visitar o ateliê do artista para assistir à abertura do forno
noborigama, que atinge 1400 graus de temperatura, é programa imperdí-vel
- a próxima abertura acontece no dia 7 de julho.
Depois da
visita, acelere 30 quilômetros pela sinuosa e bonita SP-171 e caminhe
por meia hora até os 1850 metros de altitude da Pedra da Macela. Lá de
cima, a vista da serra do Mar e das baías de Paraty, Angra dos Reis e
Ilha Grande é inesquecível e merece horas de contemplação. Para garantir
o visual, escolha um dia de céu azul, sem nuvens. Mesmo porque, se
estiver chovendo e seu carro não for um Fusca...
Fuscunha
A criançada da zona rural de Cunha vai
para a escola com ônibus cedidos pela prefeitura. Mas não se engane.
"Pelo menos dez linhas são servidas apenas por Fuscas", conta Mario
Almeida, 40 anos, coordenador de transporte escolar. "Tem lugares que um
ônibus não chega perto." Dono de um Fusca ano 75, ele quer organizar o
primeiro Fuscunha. "A idéia é atrair turistas e arrecadar dinheiro para o
Projeto Amigo da Criança."
Marcha à ré
Durante
os dois dias em que desfilou em Cunha, o New Beetle, versão renovada do
carro mais desejado na cidade, quebrou o pescoço dos pedestres e,
quando estacionado, era logo rodeado. No entanto, poucos cunhenses
trocariam seu Fusca velho de guerra pelo modelo com tração dianteira,
baixa altura em relação ao solo e produzido sobre a plataforma do Golf.
Se você não tem um Fusca e pretende visitar Cunha, anote a dica do
piloto de teste da Pirelli, César Urnhani: "Para enfrentar as ladeiras
mais difíceis, tente manobrar e subir de ré. Assim o peso vai para o
eixo dianteiro, onde está a tração do carro". Fora as picapes médias,
como a S10, e grandes, como a F-250, os únicos nacionais com tração
traseira são os raros Lobini e Spyder Chamonix. Entre os importados, a
lista tem BMW e Mercedes.
Top 5
No mercado de usados, o Fusca ainda é
um sucesso. De janeiro a maio, 89236 unidades do carro foram
comercializadas Brasil afora. O VW só fica atrás do Gol, do Uno, do
Palio e do Corsa.
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